3 de ago. de 2010

Roupas e histórias que não me servem mais


Nunca pensei que separar roupas para uma campanha social me fizesse refletir tanto sobre momentos da minha vida regados a insegurança, conquista, desilusão, ruptura e esperança. A cada peça separada, o resgate de uma história e de intensos sentimentos que marcaram várias fases da vida.

A blusa azul, com a descrição “Route 66”, guardada há 12 anos, ainda conserva as características de uma peça com pouco uso. Justa demais e curta o suficiente para ser abolida de um guarda roupa de uma pessoa com mais de 25 anos, certamente nunca mais seria usada por mim. Então, por que guardá-la por tanto tempo, quando, na verdade, mesmo na adolescência nunca a usei o suficiente?

Uma época de sentimentos ambíguos de conquista e infelicidade foi relembrada quando encontrei uma pequena saia jeans escondida no fundo da gaveta. Fiz questão de experimentá-la para me certificar de como estava e me sentia magra demais e cansada quando a comprei. Depois de um dia exaustivo de trabalho, fui ao shopping na ânsia de esquecer as terríveis provas diárias a que era submetida naquele ambiente de trabalho. Na época, conquistei excelente salário e uma vaga que qualquer profissional da minha área exibiria com orgulho. A realização profissional era acompanhada de uma tristeza profunda por conviver com pessoas emocionalmente doentes e de uma maldade impregnada nas menores atitudes.

Claro que a saia não me serve hoje, quando na verdade, nunca coube em minha vida. Nunca fui uma pessoa consumista, de afogar as mágoas em compras de roupas e sapatos, mas naquele dia fugi para o shopping. Provavelmente, o que eu queria era gastar aquele dinheiro que me trazia tanto desgosto e infelicidade. Uma forma de me punir por aceitar, complacente, aquela situação tão distante de minha personalidade e sonho de vida.

A camisa branca que usei naquela entrevista de emprego também foi para a campanha. Aquela camisa que escondia a minha tatuagem e transmitia a imagem de uma profissional séria, competente, com credibilidade e segurança não é mais necessária em minha vida. Mesmo porque, quando assumi aquela vaga, naquela grande companhia, após passar por um criterioso processo seletivo, percebi que muitos outros profissionais ali, não apresentavam essas características. Eram acuados, medrosos e se submetiam a situações ridículas e injustas...

O vestido preto, justo, com uma enorme fenda na lateral foi adquirido há seis anos. Admito, envergonhada, que ele foi usado uma vez. Sabe aquelas atitudes que a gente tem e depois pensa “onde eu estava com a cabeça?”. Não sei como tive a ousadia de sair com ele de casa, mas quem não conserva uma mancha no passado? Racionalizando sobre essa compra, hoje tenho consciência de que ele foi escolhido para suprir uma necessidade de me sentir feminina e sensual, em uma época cercada por inseguranças.

Após longa análise, o vestido preto acabou voltando para o armário com o compromisso de passar por reforma. A fenda será fechada e o comprimento diminuído. O decote ficará bem menor e a alça terá um novo formato. Enfim, a partir de agora, o vestido preto terá a minha cara e sairei com ele pelas ruas, como uma mulher segura, que sabe o que quer e tem certeza do que não quer.

As duas últimas peças vindas daquele grande amor também foram escolhidas. Há muito tempo não eram usadas e suas histórias estavam trancadas e empoeiradas, lá no fundo do baú. Quando vieram à tona, à luz do dia, as peças trouxeram lembranças de uma história bonita, com o final triste e doloroso das separações. Mesmo recordando as dores e as lágrimas causadas pela ruptura de um amor, tive a certeza de uma coisa: amamos um amor. Depois amamos outro amor. E podemos amar novamente. Cada pessoa tem sua história, seu momento e ocupa um sentimento em nossa vida.

Muitas peças foram separadas para que outras pessoas possam aproveitá-las e viver suas próprias histórias. Mas uma não pôde ser doada. Não por seu valor material, porque não sou apegada a essas coisas, mas pelo significado. Aquela saia hippie, leve, colorida e singela, como a vida que sempre sonhei. Aquela saia que sempre me deu uma sensação de liberdade, de uma vida simples e feliz. A sensação que vivo e persigo, de fazer o que gosto, sempre com paixão, de me vestir de forma espontânea, de estar entre pessoas que admiro e de acreditar que as coisas podem ser diferentes. A sensação de que cada ser humano é único e pode fazer a diferença e que podemos manter nossa originalidade, escolhendo o próprio caminho. Sensações assim sempre são cutucadas quando encontro aquele pedaço de pano velho, amassado e ralo, de tanto uso.

Oxigênio me faltou quando encontrei escondida atrás de minhas calças jeans aquela camisa velha, que ele vestia sempre que estava em casa. Guardei para nunca mais esquecer seu cheiro, na esperança de armazená-lo em meu armário, eternamente. Lembro-me perfeitamente sua cara de espanto quando apareci, toda empolgada, com uma saia jeans nova que acabara de comprar. Imediatamente me reprimiu dizendo que eu tinha tantas saias novas, por que sair de casa com uma velha e rasgada? Ah se meu pai soubesse que gastei minhas economias na compra daquela saia “velha e rasgada”...

19 de jun. de 2010

E a vida nasce na Rua Lázaro...


A Rua Lázaro Teodoro da Silva, daquele bairro novo, começou a receber seus primeiros moradores. Mesmo sem asfalto, várias casas estão sendo construídas e os vizinhos de ruas paralelas já começam a adotá-la como rota principal para as crianças irem à escola; para os trabalhadores pegarem o ônibus; para as mães levarem os filhos à creche ou para os fiéis seguirem à igreja mais próxima.

A Rua Lázaro Teodoro da Silva acabou de receber sua primeira árvore. A família Silva mudou há apenas uma semana e já mobilizou os vizinhos na escolha do tipo ideal de arbusto para a calçada. Daqueles que não quebram o chão, nem estouram o muro. O pequeno Gabriel, de seis anos, fez apenas uma exigência: “tem que ser árvore com flor” e essa característica foi a responsável pela escolha do Manacá da Serra, um arbusto de médio porte que ostenta lindas flores grandes e arredondadas. Com pétalas que mais parecem corações, a florada desabrocha na cor branca, depois muda pro tom de rosa e finalmente pode ser apreciada em uma tonalidade mais escura, na cor roxa. A iniciativa estimulou os outros vizinhos e, em pouco tempo, várias árvores começaram a ser plantadas. As crianças ficaram responsáveis em cuidar das árvores, daquele jeito de criança, regando e brincando com a água.

Um novo membro acabou de chegar à Rua Lázaro Teodoro da Silva. Os vizinhos o apelidaram de Soldadinho. Nem casa ele tem, vive ali, pelas calçadas, abrigando-se entre um muro e um carro estacionado na rua, mas já se sente o dono do pedaço. O coitado do carteiro levou um susto quando, distraído, ao colocar uma carta na caixinha do correio do seo Manoel, foi pego de surpresa pelos latidos desesperados do Soldadinho.

Mas não deve ter sido por acaso que o pequeno vira lata resolveu ficar por ali. A Rua Lázaro Teodoro da Silva é cheia de crianças e, todo final de tarde, quando chegam da escola os pequenos se reúnem em frente à casa da tia Jandira - ponto de encontro da garotada – para dar início às brincadeiras de rua e, claro, alimentar o Soldadinho.

Quando, exaustos de tanto brincar de mãe de rua, queimada e taco, os pequenos se amontoam na varanda do seo Chico pra ouvir umas estórias esquisitas que ele garante que aconteceram na roça, lá nas bandas de Minas Gerais. Os contos falam de cavalos que sumiam em disparada nas estradas de chão, ao se depararem com espíritos e jovens moças que davam fim à vida depois de uma desilusão amorosa. As crianças morrem de medo das estórias, mas insistem em ouvi-las quase todos os dias.

Timidamente, o progresso começou a dar o ar da graça na Rua Lázaro Teodoro da Silva. Com planos de comprar o primeiro carro da família, Márcia aproveitou o espaço inutilizado da garagem e instalou ali três computadores, apresentando aos moradores a primeira Lan House do bairro. Em um lugar improvisado, os computadores foram montados em mesas plásticas, daquelas de festa. Curiosos sobre a função daquele novo estabelecimento, os vizinhos foram chegando, perguntando, mexendo e, em poucas semanas, a Lan House estava repleta de clientes. Os adultos ainda não entenderam direito o que fazer com aquilo, mas as crianças, que já viram computadores na escola, ainda nem tiveram aulas de computação, mas como nasceram na era da informática aprenderam rapidinho sua utilidade.

A conversa agora, na Rua Lázaro Teodoro da Silva, só gira em torno de uma moradora diferente que mudou para lá. As crianças não entendem como uma menina de nove anos não consegue andar com as próprias pernas e precisa se locomover com uma cadeira com duas rodas bem grandes. Os pais também não conheciam nenhuma criança nessa situação, mas explicaram aos filhos que provavelmente ela teria alguma deficiência que a impedia de andar. Aos poucos, as crianças foram se aproximando de Janaina que, inicialmente parecia bastante tímida, mas depois se mostrou a mais falante de todas as meninas do bairro.

Curiosas, as crianças queriam entender como Janaina fazia para se locomover dentro de casa com uma cadeira de rodas. Foi aí que conheceram a casa da menina e viram que ela tem portas mais largas e algumas coisas são mais baixas, para facilitar seu acesso. A partir desse momento, muitas coisas mudaram na Rua Lázaro Teodoro da Silva. Enquanto a rua ainda não tinha rampas de acesso para deficientes, as crianças solicitaram que os moradores deixassem os carros fora das rampas da garagem para facilitar a acessibilidade de Janaina pela rua. As brincadeiras quase não foram alteradas, porque as crianças perceberam que a menina não era tão diferente assim e, mesmo em uma cadeira de rodas, participava de tudo como toda criança feliz.

Certamente, na Rua Lázaro Teodoro da Silva, haverá um pai que deitará todas as tardes com sua filhinha no sofá e cantará para ela repentes e poesias musicadas. Aos domingos, esse pai levará a menina no campo de futebol para juntos assistirem ao jogo do seu time preferido. Aos sete anos, a menina ainda não deve entender muito de futebol, mas além de adorar a companhia do pai, nunca dispensará o delicioso sorvete a que tem direito. Nos anos seguintes, já na adolescência e juventude, aos domingos, enquanto a mãe e as irmãs conversarão na cozinha, a menina, que já será uma moça, irá preferir assistir ao jogo de futebol deitada no sofá, na deliciosa e insubstituível companhia do pai.

* Texto dedicado ao meu pai, Lázaro Teodoro da Silva, falecido em 1º de julho de 2004.

25 de jan. de 2010

Porque não assisto


Uma simples pergunta me fez avaliar os últimos meses da minha vida.

“Você está assistindo o BBB?”

Minha última crônica foi escrita há cinco meses. As aulas de inglês acumulam mais faltas que presenças. Há três meses, minha amiga Lara me convidou pra botar o papo em dia, prometi um reencontro no início do novo ano, ainda sem data concreta.

O desejo de começar uma nova pós-graduação corre o risco de ficar enrustido. Tia Cida faz questão da minha presença no casamento da filha da prima Elizabete, em Minas Gerais. Pena que no mesmo dia tenho a formatura da amiga Shirley, em Limeira e, caso fique por aqui, conseguirei dar uma passadinha antes no aniversário de um ano da filha da Kátia e, no domingo, fazer uma visita pra amiga Dani, que acabou de fazer uma cirurgia.

Será que esse ano conseguirei, finalmente, me dedicar à fotografia? Não sei não... porque as aulas de tecido aéreo terão que esperar mais um pouco. Pelo menos se eu conseguir cumprir o treino de musculação durante a semana, já será um grande avanço.

A consulta do Piti, na veterinária de Valinhos, já foi adiada umas três vezes, com isso a catarata já tomou os dois olhos do bichinho, mas desse mês não passa. Pelo menos a limpeza no guarda roupa já fiz no primeiro dia do ano. Ah, nada melhor que iniciar uma nova fase abrindo mão do que não me serve mais. Renova as energias e abre espaço pras novas conquistas.

Mas quando penso que há seis meses comprei o livro “A mulher do próximo”, de Gay Talese, em plena FLIP, com autógrafo e tudo, e ainda não li... Aposto que o Shiraga já leu o dele, porque a Amanda me disse que terminou a leitura em dezembro.

Bom, seu eu for mensurar aqui os filmes que não assisti. Aliás, Paulo, preciso confessar que ainda não vi “O declínio do império americano”, do diretor Denys Arcand, que você me indicou depois que comentei ter adorado “As invasões bárbaras”. Mas pelo menos está em minha lista de filmes a serem vistos, juntamente com “Os sonhadores” e uma porção de outros títulos.

E como a ideia do trabalho voluntário com as crianças daquela comunidade carente ainda não saiu do papel, acho que já está explícito o porquê não assisto o BBB.

4 de ago. de 2009

Sim à morte


Entender o ser humano é cada vez mais difícil e de tanto me surpreender com as loucuras do bicho homem, achava que nada mais nesse mundo me arregalaria os olhos, até que dias desses, ouvi uma história...

A garota de 22 anos aparentava mais de 40. Sexo para bancar as drogas e drogas para bancar a vida. O círculo vicioso de uma existência redundante e infeliz a fez portadora de um vírus letal, o HIV.

Viver - para a garota condenada à morte – era um fardo pesado demais. Com a ajuda do crack os segundos eram dias, os meses pareciam minutos, perfeito para quem estava anestesiada de qualquer sentimento.

O ofício do sexo sustentava o vício e, com o cheiro da morte impregnado em suas narinas, decidiu que não partiria sozinha, levaria consigo todo ser humano que, com ela, desfrutasse poucos minutos de ínfimo prazer.

A decisão por não se prevenir no sexo, além de antecipar seu atestado de óbito, colocou-a no único momento em que criou algo: novas vidas. Duas crianças foram geradas e, por forças divinas, não contraíram a doença.

Para tentar conter a procriação desenfreada que trazia ao mundo, pequenos inocentes condenados a um futuro incerto, uma assistente social ofereceu ajuda, a possibilidade de uma cirurgia de laqueadura. A improbabilidade da resposta é de enlouquecer qualquer estatístico gabaritado:

“Essa cirurgia vai contra meus princípios religiosos”.


Depois disso, tive a certeza de que existe consciência após a morte. Porque esse ser humano estava morto e, de repente, resolveu expressar algum tipo de reação à vida...

11 de jul. de 2009

Festival Paulínia de Cinema: de encher os olhos!


Na sexta-feira (10/07), estive no Festival Paulínia de Cinema, que segue até 16 de julho. Esta é a segunda edição do festival e a primeira vez que prestigio o evento. Logo na chegada, fiquei impressionada com a grandiosidade do Theatro Municipal de Paulínia. Um imenso local e de uma estrutura capaz de encher os olhos dos mais prestigiados profissionais da área de cinema e audiovisual.

A pequena e rica cidade, com pouco mais de 70 mil habitantes, vem desenvolvendo um intenso trabalho no sentido de tornar-se um polo cinematográfico e, pelo visto, proposta já consolidada.

O projeto de Paulínia é bem complexo, envolve incentivo financeiro a produções brasileiras, locações e estrutura para filmagens no município, formação de mão de obra especializada por meio de capacitação de jovens talentos em diversos segmentos de uma produção cinematográfica e um festival com pretensões em firmar-se como um dos eventos mais importantes do cinema brasileiro. A ideia do festival também é bem interessante, pois é a oportunidade para os realizadores mostrarem ao público a concretização de todo o trabalho desenvolvido.

E por falar em público, a entrada para o festival é gratuita. Quando vi essa informação na internet pensei que os ingressos deveriam ser retirados antecipadamente, porque “claro que iriam esgotar rapidamente”, mas que nada. Cheguei na hora e entrei! Aí temos duas questões: o local é realmente muito amplo capaz de abrigar muita gente ou a falta de interesse do público em eventos culturais, que ainda são tidos como muito elitizados, na visão da sociedade em geral. Enfim, fico com a segunda opção, infelizmente. Na seção das 18h, deu pena ver aquele lindo e imenso local com cerca de 50% dos lugares ocupados. Já na seção seguinte, das 20h, estava bem mais cheio, sobrando poucos assentos vazios.

No contexto geral, creio que em alguns anos, firmando-se como polo cinematográfico e provendo um reconhecido festival de cinema, com um elaborado trabalho de comunicação, pessoas de várias partes do país disputarão um lugar no festival a fim de prestigiar os lançamentos e as premiações do cinema nacional, em Paulínia.

No ano passado, ouvi uma crítica de uma pequena produtora de audiovisual de Campinas. Ela dizia que Paulínia era extremamente fechada aos trabalhos menores e que apenas grandes produções tinham acesso aos incentivos. Não sei bem se tenho essa opinião, porque o festival contempla várias categorias, entre elas, tem um espaço para os curtas regionais. Acho que a questão tem que ser avaliada. Mas com certeza, é nítida a proposta do polo cinematográfico do município em adquirir visibilidade e notoriedade nacional, com prospecção em atrair grandes produções. Então, creio que a proposta é justamente essa.

Em minha primeira visita, fiquei encantada com os trabalhos que vi por lá. Entre eles, o documentário “Caro Francis”, dirigido por Nelson Hoineff sobre o jornalista Paulo Francis. Eu quase nada conhecia do trabalho do Francis e tive o prazer de me deparar com as contradições cultivadas ao longo de sua vida. Impossível não se emocionar com o longa “O Contador de Histórias”, de Luiz Villaça. A história real de um menino desacreditado pela sociedade é um tapa na cara. Na minha doeu!

30 de jun. de 2009

O homem da minha vida: Chico


Cássia Eller disse, no início de uma canção, que Chico Buarque era seu verdadeiro pai. Eu digo que Chico é o homem da minha vida!

O sábado estava curto para todos os compromissos reservados para um único dia. O próximo seria às 14h e como "ainda" faltavam 15 minutos, resolvi voar para a livraria mais próxima para comprar o lançamento de Chico, "Leite Derramado" que, pra meu desespero, já tinha esgotado.

- Mas se você pedir agora, em uma semana te entrego - tentava me convencer a vendedora.
- Você não está entendendo, preciso levar esse livro agora.
- É pra presente?
- Sim. Um presente pra mim.

Agora só tenho dez minutos para a compra. Saio em disparada para a outra livraria. Para minha surpresa, um recado na porta indicava "horário de almoço, das 12h às 14h".

- Ai, ai, ai. Nunca vi isso. Uma livraria que fecha por duas horas. Bom, como tenho inúmeros afazeres, não vou ficar aqui parada dez minutos. Aproveito pra passar na casa da amiga aqui perto pra pegar meus produtos que chegaram.

Pronto. Tudo certo. Chego à livraria às 14h05. Compro meu precioso presente e chego ao meu próximo compromisso uns vinte minutos atrasada, mas feliz da vida!

À noite, o telefone toca, era a amiga psicóloga:

- Oie! Vamos fazer alguma coisa hoje?
- Ah não. To a fim de ficar em casa com o Chico...
- Que Chico???
- O Buarque! Comprei "Leite Derramado" e não vejo a hora de ir pra cama com ele. Deliciar-me com sua literatura poética. As críticas desse livro são excelentes!
- Ah que concorrente forte. Nem vou insistir. Quando terminar o livro, sou a primeira da fila.

Minutos depois, liga a amiga engenheira:

- Amiga! O que vamos fazer hoje?
- Ah eu vou ficar em casa com o Chico.
- Quem é esse? Paquera novo?
- Não deixa de ser. Acho que to apaixonada por ele.
- Então conta logo. Quem é o cara?
- Chico Buarque!
- Aquele cantor?
- Sim. Cantor, compositor, escritor, roteirista...
- Só você mesmo. Não podia se apaixonar por alguém mais real, mais palpável? Como aquele cara lindo que estuda com você. Como é mesmo o nome dele? Ah, Renato!

Em seguida, a amiga atriz:

- Oi! O que temos pra noite de sábado?
- Sessão especial de leitura na cama.
- O que? Você! Ficar em casa em pleno sábado, lendo sozinha!
- Não amiga. Não é bem assim. Estarei muito bem acompanhada. Com Chico Buarque, comprei o novo livro dele.
- Adoro sua imaginação fértil. Já falei que você vai escrever o roteiro da minha próxima peça?

Acabo de desligar e já atendo a marqueteira:

- E aí querida, onde é a baladinha?
- Na cama!
- Sozinha ou acompanhada?
- As duas coisas.
- Como assim?
- Acompanhada da estonteante leitura de Chico Buarque!
- Chico? Lançou livro novo né? Tava tão sumido da mídia...

Pra finalizar os convites, liga o paquera:

- Oi amor! Quer aquecer minha noite fria tomando um vinho comigo?
- Ai. Não posso. Vou pra cama cedo com o li
- Com quem???
- Calma! Nem me deixa concluir a frase! Tava dizendo que vou ler o livro do Chico Buarque.
- Vai deixar de sair comigo pra ler um livro? Depois as mulheres reclamam que os homens não querem nada sério...

Depois da sessão de explicações, sigo para a cama desejando iniciar minha leitura e nem preciso fazer muito esforço pra lembrar que estarei muito bem acompanhada,

do homem que canta:

"Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas"

do homem que compõe:

"Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã"

do homem que escreve:

"Quando eu sair daqui,
vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância,
lá na raiz da serra"

Como não se apaixonar por Chico?

16 de mai. de 2009

A vida não para


Ela me persegue. Maldita insônia! Já faz um tempo que toda noite é aquele ritual. Passar óleo de amêndoa no umbigo (dizem que é um santo remédio pra dormir feito anjo, só não funciona comigo), tomar um chá quentinho, passar uns 300 cremes para as mais variadas partes do corpo, relaxar e, quando estou quase lá, praticamente em Estado Alfa, sou abruptamente despertada do paraíso por uma mensagem no celular, santa tecnologia.

À 1h26, em plena madrugada de terça-feira, a mensagem da amiga dizia “olha o seu Orkut”. Ai meu Deus! Viro do lado e finjo que foi um sonho. Tento voltar ao tão sonhado estado de quase meditação, ao transe hipnótico anterior ao desejado sono profundo, mas já era tarde, a única informação que passava pela minha mente era “olha o seu Orkut”.

Não é possível. Isso é ridículo! Acordar agora, levantar da cama, ligar o computador, entrar no Orkut só pra ver uma mensagenzinha que eu nem sei se vale a pena? Não vou fazer isso! Tenho autocontrole e vou esperar até amanhã de manhã!

Mas e se for aquelas mensagens obscenas deixadas por aquelas comunidades pornográficas que queimam o nosso filme em rede mundial? Ah mas se for isso todo mundo já sabe que é spam, vírus, lixo eletrônico e ninguém vai ser inocente ao ponto de achar que a mensagem é direcionada a mim. É verdade!

Hum mas o texto dizia “olha o seu Orkut”, e nem terminava com um “beijo”. Estranho. Porque sempre concluímos nossas mensagens dessa forma. Estou começando a achar que o assunto é sério. Sei lá, vai que o cachorro da Déia morreu; o Re teve um ataque de alergia; a Pri fraturou a clavícula; a Mo engoliu uma moeda! Mas também, acho que não poderei fazer muita coisa a essa hora. Melhor desencanar e tentar dormir. Mas como?

“Olha o seu Orkut”, “olha o seu Orkut”, “olha o seu Orkut”. Nem travesseiro na cabeça resolve essa imposição mental. Por que não desliguei esse celular antes de dormir? Ai amiga você me paga. Se a mensagem não valer a pena, você me paga!

É o que dá esse universo virtual que a gente se mete. Não damos conta nem dos compromissos reais, ainda temos que nos preocupar dia e noite com as mensagens de e-mail, as informações nos grupos de discussões, os recados do Orkut, os comentários nos Blogs, as atualizações do Flickr, os acessos aos vídeos postados no You Tube.

E não para por aí, todo dia é convite que chega pra “criar um perfil” naquele site de relacionamento, porque “todos os seus amigos estão por lá”. É um novo programa que oferece agenda e atualizações de amigos. Um outro que promete organizar suas pastas de fotos. Uma tecnologia que permite filtrar todas as notícias que você quer ver. Ai, ai, ai, se você perder as suas senhas, se esquecer os logins. Será como perder um braço, deixar de respirar por alguns minutos, ter dez graus de miopia (ainda bem que pra isso tem cirurgia a laser).

Dia desses li em algum site, desses de fofoca de celebridades, que a bela atriz Jennifer Aniston terminou seu namoro porque o cara dizia não ter tempo pra ela, porém passava horas postando no Twitter. E o pior é que isso vicia mesmo!

E esse mundo virtual que não para. Eu preciso dormir.

Maldita insônia. Santa tecnologia. E em menos de um minuto eu já estava plugada no Orkut, antenada nos recados, inteiramente informada do que acontecia com a minha vida virtual.

E o recado?
Ah é o recado...
Se era importante?
Me fez dormir profundamente...

27 de abr. de 2009

Sempre ele


Era início de verão, a menina e sua irmã mais velha resolveram fazer exame médico para frequentar a piscina do Centro Comunitário do bairro. Chegando ao local, foram surpreendidas por uma fila de pessoas com a mesma intenção. A irmã logo encontrou suas amigas de escola e nem percebeu o tempo passar. Já a menina, naquele dia, estranhamente não queria falar com ninguém. Tudo bem que ela não era tão popular quanto a irmã. Sua vida era preenchida por seletivas amizades, contadas nos dedos de uma única mão. Mas aquele dia estava diferente. Ao seu redor, vários diálogos se cruzavam e ela, alheia a tudo, parecia viver em um mundo sem som.

A única sensação que despertou seus sentidos foi a puxada de sua irmã que a pegou pelo braço levando-a à sala ao lado, para o início do exame. Várias meninas aglomeravam-se aguardando o atendimento. O médico era ligeiro, talvez precisasse terminar logo os exames para atender algum caso no hospital, ou quem sabe tinha pacientes agendados em sua clínica, mas o fato era que ele nem olhava para o rosto das pessoas e levava menos de um minuto para concluir o exame.

Quando chegou a sua vez, o procedimento começou da mesma forma. Abria os dedos das mãos, depois os dedos dos pés, virava para mostrar a pele das costas e os cabelos e, ao final do exame, quando o médico ouviu seu coração, olhou pela primeira vez em seus olhos.

- Você tem algum problema cardíaco?
- Que eu saiba não.
- Já foi alguma vez ao cardiologista?
- Não.
- Então acho melhor você procurar um especialista o mais rápido possível. Detectei uma arritmia cardíaca, uma espécie de taquicardia. Você precisa ser tratada.

A notícia veio como uma bomba à família. A mãe chorava pelos cantos, sempre às escondidas, lembrando da tia Amélia que faleceu muito moça em razão de problemas no coração. A linda jovem que gostava de costurar e sempre sentava na primeira fila das missas aos domingos, tinha apenas 19 anos quando sentiu fortes dores no peito e faleceu em casa, sozinha, enquanto sua mãe corria na vizinhança em busca de socorro.

O pai da menina esforçava-se para não relacionar a suspeita de arritmia da filha com o triste fim de seu compadre Nelson, falecido há seis anos com complicações cardíacas, após contrair a doença de Chagas transmitida pelo inseto barbeiro. O falecido compadre nunca teve sorte na vida. Desde criança trabalhava na roça para ajudar a sustentar a família e aos 11 anos já era portador da doença. Há alguns anos, decidiu ter mais qualidade de vida no interior de São Paulo, fugindo das precárias condições de moradia e falta de saneamento básico do sertão de Goiás, porém, maltratado pela vida e consumido pela doença, não viveu mais que uma década na nova cidade. Pobre coitado!

A irmã era quem corria atrás de atendimento público para a menina. O posto de saúde do bairro onde moravam nem estava agendando consultas para esse semestre e a lista de espera, em caso de desistência, tinha mais adeptos que fila de cinema em dia de meia-entrada. Em casos como esse, vale a pena abusar da popularidade em defesa de uma causa maior. Foi o que fez a irmã, lembrou que a mãe de um amigo trabalhava no posto central e na semana seguinte conseguiu uma consulta com um Cardiologista, caso contrário, precisaria primeiro marcar com um Clínico Geral, aguardar alguns meses pelo atendimento, até que ele a encaminhasse para um Cardiologista, e aí, mais um chá de cadeira para a consulta com o especialista, sem falar na fila de espera para os exames clínicos.

Preocupada em agilizar o processo, a família reuniu dinheiro de parentes para pagar os exames. No retorno ao médico, com todos os documentos em mãos, a menina aguardava apreensiva pelo diagnóstico que poderia alterar todo o curso de sua vida. Enquanto folheava os relatórios dos exames, algumas páginas pareciam chamar a atenção do médico que, às vezes, pausava um pouco mais. Ao final do relatório o especialista olhou seriamente para a menina e questionou:

- O que você sente?
- Ah doutor nunca senti nada, mas de umas três semanas pra cá comecei a sentir meu coração acelerado, parece que vai sair pela boca. Minhas mãos estão sempre geladas. Perdi o apetite, não consigo comer nada e já emagreci uns três quilos. Também não consigo mais me concentrar nos estudos.
- Sei. Você tem namorado?
- Sim
- Vocês costumam brigar?
- Às vezes.
- Quando foi a última discussão?
- Na verdade, terminamos o namoro há três semanas.
- Pois é minha filha, seu coração funciona em perfeito estado, o que você tem é dor de amor, muito comum em jovenzinhas da sua idade.

E foi assim que a menina, no alto de seus 16 anos, sofreu pela primeira vez de uma dor que se repetiria em muitas outras fases de sua vida. Enquanto ela respirou, enquanto seu sangue correu em suas veias, enquanto sua vida fazia parte desse mundo, a menina, hora ou outra, era acamada por essa doce convalescença.

Ah o amor. Sempre ele.

18 de abr. de 2009

Amor em segredo


A amiga Amanda me emprestou um livro que eu gostei bastante “Amor em segredo – As histórias infiéis que aprendi com meu pai”, de Sonia Rodrigues, filha do aclamado escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues. Com uma história de vida bem complexa, Sonia, uma irmã e um irmão são frutos de um relacionamento extraconjugal de Nelson Rodrigues que nunca assumiu oficialmente a paternidade.

O livro é praticamente uma autobiografia, em vários capítulos a autora comenta sobre a conturbada relação com os pais, uma mãe apaixonada e impulsiva e um pai omisso às dificuldades vividas pela família bastarda.

Gostei muito da forma como a autora descreve o amor e sua relação com esse sentimento. No capítulo intitulado “Fácil” Sonia escreve que só se interessa pelo amor que seja fácil, caloroso, generoso. “Para mim, ser intenso tem relação com facilidade. Ser fácil é muito gostoso.”

Sonia tem um estilo bem peculiar e deixa isso evidente ao revelar em seus textos os bastidores do ato de escrever e sua a relação com os personagens: “Fico feliz quando acerto a mão numa personagem como Bela, porque escrevê-la foi profético. Mal sabia eu que um ano depois eu precisaria aprender com a mulher de papel a repensar minha prática amorosa.”

Gostei do livro e recomendo!

10 de abr. de 2009

Presságios


Gente essa vida é mesmo cheia de mistérios. Semana passada, entrei pela primeira vez no blog do João Geraldo Lopes Gonçalves – o Janjão – ele escreve no http://www.jornalistas.blog.br/, onde também escrevo, e tive o prazer de ler um poema que ele criou inspirado em minha crônica “Tenho medo é dessa gente”.

O que achei interessante disso tudo é que já faz um tempo que vejo os textos dele no Jornalistas e nunca havia acessado seu blog, mas resolvo fazer isso justamente quando ele faz uma referência ao meu texto. Como escrevi pra ele, cada dia acredito mais na frase do personagem Shakesperiano – Hamlet – de que“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. Adoro esses presságios!

Quanto ao poema de Janjão, vale a pena ser lido! Vai lá!

2 de abr. de 2009

Tenho medo é dessa gente


Em uma das viagens à praia, eu e uma amiga conhecemos um hippie, o Joãozinho. Um garoto bem jovem, de uns 22 anos, nascido no Rio de Janeiro, porém, como um hippie que se preze, ele era mesmo um cidadão do mundo.

De estatura pequena e um sorriso enorme que evidenciava dentes perfeitos (pra quem acha que hippie não escova os dentes, ele escovava, eu vi), Joãozinho foi o primeiro e único ser humano desconhecido que me pediu carona e eu dei. Estávamos em Ubatuba/SP e seguiríamos de carro até a Vila de Trindade, uma concentração de belíssimas praias localizadas em Paraty/RJ. Quando o jovem ficou sabendo de nosso destino, abriu um largo sorriso e pediu: – Ei garotas posso ir com vocês?

Eu e minha amiga trocamos olhares, tentando encontrar algum sinal de desaprovação uma na outra, mas como isso não aconteceu, logo estava Joãozinho, cujo nome ainda nem sabíamos, sentado no banco traseiro do meu carro, feliz da vida por estar indo àquele paraíso, ao encontro de seus semelhantes. Quem conhece Trindade sabe do que estou falando.

Tento até hoje entender o que me fez aceitar uma proposta tão insegura e cheguei à conclusão de que pessoas “diferentes” me passam mais confiança do que as “normais”. Também, no mundo em que vivemos, com tanta hipocrisia - estranho é ser normal.

É gente pregando isso e fazendo aquilo. Gente frustrada que não gosta do que faz, mas faz por necessidade. Gente que veste bata e “come criancinhas”. Gente que é eleita pelo povo e depois engana o próprio eleitor. Gente que esquece as promessas que fez. Gente que coloca filho no mundo, mas não pensa em preservar o planeta para as próximas gerações. Gente que abandona seu animal de estimação quando ele está velhinho e precisando de cuidados.

Tenho medo é dessa gente! Ela me confunde, me irrita, me enoja. Ainda mais quando vejo gente ensinando o filho a desprezar homossexual, a desrespeitar os avós em suas limitações físicas, a humilhar os mais pobres que não possuem os mesmos bens.

Vivo de medo é de gente que vai à igreja e prefere ver o mundo contaminado pelo vírus da AIDS a aceitar a propagação do uso de preservativos no combate à doença. Com Joãozinho aprendi que não pertenço ao grupo dos “normais”, sou mesmo é do lado dos “diferentes”.

E no final da viagem, para não perder contato com uma pessoa tão especial, minha amiga pediu o e-mail do jovem hippie. Com toda a espontaneidade de quem é acostumado à liberdade e desprendimento, o garoto explicou que o grande barato da vida é o acaso: - Um dia, se tivermos que nos encontrar novamente, certamente isso acontecerá.

E assim, o diferente seguiu seu caminho pelo mundo. Livre de preconceitos, de imposições e limitações. Carregando uma mochila com uma barraca, uma troca de roupa e muitas histórias vividas com gente estranha.

11 de mar. de 2009

Assim é a vida Lucas


- Tá cheio aqui hoje né?

Levanto os olhos irritada pra ver quem ousava interromper minha leitura.

- Acho que vai demorar pra chegar a nossa vez – O pequeno Lucas, no alto de seus seis anos, insistia na conversa e disputava a minha atenção com um delicioso livro de crônicas que eu acabara de comprar.

O hospital de convênios realmente estava lotado, parecia mais uma unidade de atendimento público, mas o que despertou minha atenção foi aquele pequeno garoto tentando levar um papo de adulto em um ambiente onde crianças na idade dele geralmente choram, gritam e fazem manha.

Desencanei da leitura, fechei o livro e em pouco tempo de bate-papo entendi sua necessidade de conversar com alguém. A cada 20 dias o garoto ia ao hospital tomar uma injeção de Benzetacil (um tipo de antibiótico utilizado para tratar infecções). Ele sofria de febre reumática e o tratamento duraria por mais quatro anos, até os dez anos de idade.

A danada da injeção é muito dolorida, dizem que chega a endurecer a perna de tanta dor, e o pequeno Lucas tentava esquecer o sofrimento conversando com as pessoas. O pai orientava o garoto a ficar mais calmo dessa vez. Ele comentou que o menino nunca chorava, mas ficava enfurecido logo após a aplicação, saia da sala pisando firme e muito nervoso.

Lucas fique tranquilo porque esses quatro anos passarão muito rápido, aliás, a vida passa muito rápido. Na verdade, ela voa. Ah, você vai ver só. Vai desejar desesperadamente completar seus 18 anos para tirar a carteira de habilitação; entrar nas baladas para maiores; começar sua faculdade; quem sabe até morar sozinho em uma outra cidade. Vai sentir-se independente, chegar em casa no horário que quiser e nem vai precisar dar satisfação pra mãe e pro pai.

Na fase dos 20 e poucos anos Lucas, vai chegar um momento em que você estará cansado de tanto estudar, vai querer trabalhar na sua área e para isso, almejará que a faculdade termine logo. O problema Lucas é que depois do final do curso, se você encontrar dificuldades para conquistar o emprego dos seus sonhos, vai desejar que o tempo passe mais devagar para conseguir entrar nos processos de trainee para recém-formado. É aí Lucas que você perceberá o quanto a vida é acelerada.

O que Lucas? Você também tem que fazer exame de sangue a cada seis meses para controlar a doença? Ah mas um semestre demora pra passar Lucas. Veja só, são seis meses, metade de um ano. É só quando começam as férias escolares, não demora pra chegar?

Eu sei, eu sei Lucas. Tá meio contraditório isso né. Uma hora o tempo passa rápido demais, outra ele demora pra passar. Mas sabe o que é Lucas, a vida é meio complicada mesmo. Quando você é criança quer logo ser adulto e, ao ser adulto, quer voltar a ser criança.

Vou tentar explicar. Seu pai não te prometeu dar um presente a cada 20 dias, quando você tomar a injeção? E mesmo não gostando de tomar o antibiótico você não deseja que esse dia chegue logo para ganhar o presente? Então, a vida é mais ou menos assim. A gente quer muito ser jovem, mas ser jovem experiente, bem sucedido profissionalmente, com muito conhecimento e bastante dinheiro pra poder viajar, conhecer novos lugares e culturas diferentes. Mas isso tudo a gente geralmente só conquista muitos anos depois, naquela fase em que não nos sentimos tão jovens assim. E olha lá Lucas, quando conquistamos.

Pois é menino, acho que estou complicando um pouco. Bom, deixe-me explicar de outra forma. Quando crescemos, queremos mais é curtir a vida, namorar bastante, beijar muito (mas isso é melhor você aprender mais tarde) e variar os relacionamentos, até que um dia cansamos dessa vida agitada, sem apegos e pobre de sentimentos e procuramos um compromisso sério. Desejamos muito encontrar um grande amor, daquele que te faz assistir aos filmes do Woody Allen e no final, nem lembrar do roteiro; dividir pipoca no cinema (o que acho inadmissível, isso sim é falta de privacidade); acampar nas montanhas e passar um fim de semana inteiro sem sair da barraca e, quando conquistamos algo quase inatingível nos dias de hoje, comum dos relacionamentos duradouros – a intimidade – achamos que perdemos a individualidade, repensamos nossas escolhas e voltamos à fase anterior. Ai que difícil né Lucas! Mas é assim mesmo. Infelizmente complicamos muito as coisas.

Hum chegou a sua hora né garoto, vai lá, boa sorte e se quiser, pode chorar sim, aproveite enquanto isso ainda é permitido e berre bastante, bote pra fora a sua raiva. O que Lucas? Seu pai adiantou o seu presente no sábado e hoje você vai querer outro? Aprendeu rápido hein garoto!

24 de fev. de 2009

Confidências de um álbum de família


O domingo não podia ser melhor! As quatro irmãs e a mãe se reuniram como há muito tempo não faziam, quando a grande idéia foi recebida com euforia e diversão: - vamos ver os álbuns de fotografias?

Além de uma reunião familiar, esse era também um encontro de gerações. A matriarca estava para completar seus 78 anos, sua primogênita tinha 46; seguida por outra de 43; a terceira de 40 e a caçula – temporã – como a família a definia, tinha 32 anos. A trilha sonora desse encontro não podia ser outra, o lançamento de Amado Batista era embalado no novíssimo aparelho de DVD da irmã mais velha. A caçula era a única que não se identificava com o estilo musical das demais, mas adorava viver esses nostálgicos momentos em família que lembravam sua infância na década de 80.

O primeiro álbum a ser aberto gerou muita expectativa e grandes risadas – o casamento da irmã mais velha – ocorrido há 30 anos, exatamente em 1979, quando ela tinha apenas 17. O primeiro fato a despertar a atenção foi o vestido de uma das madrinhas de civil que era simplesmente igual ao da noiva e o pior de tudo, na hora da foto elas ainda ficaram uma ao lado da outra. Meu Deus! Que falta fazia naquela época uma assessoria cerimonial pra resolver esses pequenos detalhes responsáveis por dez longos anos de terapia.

Analisando minuciosamente cada foto, a irmã caçula estranhou a igreja estar vazia, com pouquíssimos convidados. A típica família mineira, que nessa época se aventurava por terras paulistas, era conhecida por ser numerosa, com uma média de oito filhos por casal, o que representava uma infinidade de tios e primos. A explicação é de causar arrepios até aos mais antiquados e preconceituosos dos seres atuais: - Ah! As pessoas fugiam de casamento de quem fugiu. Era um escândalo pra época!

Os motivos pelos quais os casais fugiam também não foram entendidos pela irmã caçula. Parece que era pra justificar uma possível gravidez e por conseqüência, pra justificar o sexo. Então o que os jovens casais queriam mesmo era ter uma vida sexual ativa, mas isso só era possível se casassem e o casamento só era possível se fugissem e aí quando fugiam, casavam. Os parentes não compareciam, os vizinhos fofocavam, os pais entravam na igreja com a cabeça baixa, a noiva quase não sorria e o noivo parecia assustado. E assim se dava o início de uma vida a dois!

Um a um, os álbuns foram abertos e trazendo à atualidade histórias lindas, emocionantes, saudosas, tristes, festivas. As fotografias eternizaram vidas inteiras e evidenciaram o natural ciclo da vida, com a chegada das crianças a esse mundo, os batizados, os aniversários, as festinhas de escola, as medalhas e até os casamentos de quem parece que tinha acabado de nascer.

As lentes flagraram momentos únicos, brincadeiras de quem quase nunca brincava, danças excêntricas, caretas de quem corria das fotos, risadas gostosas, olhares distantes e infinitos. Foram registradas as festas de famílias, as visitas de amigos e parentes distantes, as viagens, os novos lugares e as pessoas conhecidas aleatoriamente e que nunca mais serão vistas.

As fotos denunciaram pessoas mais magras, gente mais gorda, casais que se beijavam, outros que brigavam, casamentos desfeitos, espinhas no rosto, roupas que hoje são fora de moda, cabelos esquisitos e nariz original. Teve foto escondida que reapareceu, foto rasgada e descartada. Teve gente que assumiu ser o autor daquele flagrante, gente que implorou pra ganhar uma fotografia do passado e gente que praguejou quando viu que aquela foto, daquela pessoa, ainda existia naquele baú.

O mais prazeroso de tudo isso foi saber que nas fotografias as pessoas não nos deixam, elas não partem, são eternizadas e permanecem vivas. Nas fotos, pai e mãe nunca morrem, pessoas queridas não adoecem, filho não cresce, criança não perde a inocência, gente não envelhece, momentos não se perdem e a vida nunca acaba.

17 de fev. de 2009

Nossa! Ela é gente!


Sempre com aquele olhar altivo, como quem enxerga tudo de cima, a voz firme e segura que sabe muito bem o que fala, assim era ela, a bem sucedida diretora de marketing de uma grande companhia multinacional.

Responsável por uma equipe de muitos profissionais, a mulher não deixava a desejar em nenhum aspecto, comandava brilhantemente as reuniões semanais que direcionava o trabalho de sua equipe durante toda a semana, sempre com idéias surpreendentes e uma energia de dar inveja.

Não era para menos, a alta executiva era a única mulher a compor a mesa diretora da companhia, que, digamos, era um tanto reservada quanto à posição feminina em cargos de alto nível. Mas essas diferenças ela tirava de letra, porque para ela, simplesmente não existia homem ou mulher, ela parecia não ser representada por sexo nenhum! E assim, apresentava-se nas maçantes reuniões de cúpula, onde as mais importantes decisões eram tomadas - direcionamentos que conduziam a vida de mais de 20 mil pessoas, apenas neste país.

Não que ela fosse masculina, vestia-se elegantemente como uma mulher; era casada e até tinha filhos, mas tinha algo a mais que homens e mulheres comuns não têm, alguma coisa que a colocava em uma posição diferenciada em relação aos seres humanos normais.

Ah, tem um detalhe importante: acho que ela não comia. Durante o horário de almoço, toda a equipe se revezava e saía para almoçar, mas ela sempre ficava em sua ampla sala, sozinha; concentrada; quase que em estado de meditação. É, acho que ela não comia!

A rotina era intensa, reuniões durante quase o dia inteiro, o planejamento das ações era praticamente a todo momento, porque naquela empresa tudo mudava de um dia para o outro, e isso a irritava muito, mas como ela não era gente comum, sempre conduzia tudo da melhor forma possível e o resultado era de cair o queixo.

Chegava a ser engraçado. Alguns trabalhos eram feitos de uma hora para a outra, a equipe inteira se mobilizava, sempre tinha uns estresses e discussões pelo caminho, mas quando chegava o momento de apresentar o resultado, lá estava ela, com os dados na mão e uma excelente apresentação na cabeça. Fechava os olhos, respirava fundo, posicionava a voz e apresentava de forma tão profissional que parecia ter sido planejado no semestre anterior.

Até que um dia, em uma daquelas reuniões com a equipe, em um daqueles trabalhos que não permite erros nem tempo pra vida pessoal, ela olhou para todos e com sua voz firme e segura, concluiu a reunião:

- Temos pouquíssimo tempo pra esse projeto, preciso muito do empenho de vocês. Todos devem se organizar. Não percam tempo com atividades que não são prioritárias. Devemos otimizar o nosso tempo da melhor forma possível e fazer todo o trabalho durante o expediente. Não quero ver ninguém aqui na empresa trabalhando dia e noite - exceto em casos extremos - já fizemos muito isso em projetos anteriores, senão como vamos arrumar tempo pra ir ao salão fazer nossas unhas, cabelo, depilação... Como vamos arrumar tempo pra cuidar de nós?!

Foi aí que percebi: - Nossa! Ela é gente!

31 de jan. de 2009

Querendo ficar só


Após um dia daqueles de trabalho, ela desejou uma deliciosa massa, acompanhada de um bom vinho e de uma companhia agradável, sua própria!

E é isso que fez, passou naquele supermercado de sempre, que tem comida pronta e quentinha, escolheu um talharim com molho vermelho e uma composição bem peculiar, azeitona preta, tomate seco, champignon e uma pitada de bacon crocante, delícia!

Hora de escolher o vinho. Ela nunca foi muito boa nisso, sempre gostou mais de degustar do que de comprar, mas enfim, é o que tem pra hoje. Pesquisou as marcas mais conhecidas, tinha os suaves, doces, secos, tintos, brancos e rosés, espumantes, aromáticos, era muita opção... Queria um frisante, mas como não encontrou escolheu um tinto, suave, que provavelmente iria cair muito bem com o friozinho gostoso do outono daquela noite.

Seguiu ansiosa pro apartamento, querendo ficar quietinha, tranqüila, sozinha, e provar o delicioso macarrão com vinho, em sua própria companhia! Primeiro o banho e o aconchegante ritual de se arrumar pra ela mesma.

É chegado o grande momento, já estava na cozinha devidamente preparada, o talharim quentinho, muito bem disposto no prato, quando pegou o vinho e um objeto estranho chamado saca-rolhas para a primeira experiência de sua vida no ato de abrir uma garrafa de vinho.

Desde criança, quando via um saca-rolhas guardado no armário, ela sempre soube qual era a sua função. Quando participava daqueles encontros chatos de mulheres que iam se casar, em pleno sábado ou domingo à tarde, o chá-de-panela ou chá-de-cozinha, também acreditava que esse instrumento tinha lá a sua utilidade. Mas na verdade, ela nunca tinha experimentado a sua verdadeira eficiência. Até que nesse dia, seu teste de qualidade reprovou o tal objeto.

Ela segurava a garrafa com a mão direita e o saca-rolhas com a mão esquerda e ia girando-o, girando-o, e nada de abrir. Enfiava a garrafa embaixo do braço e mexia o tirador de rolha, e nada. A garrafa agora estava na mão esquerda e o saca-rolhas, na direita, e nada. Repetia a primeira posição e nenhum resultado satisfatório.

No desespero, algumas alternativas começaram a surgir, entre elas, bater no apartamento da vizinha e pedir para que seu marido fizesse esse favor, mas pensou bem e concluiu que não seria uma boa iniciativa. Pensou até em pedir para o porteiro do prédio, mas ele vivia paquerando a jovem moça que morava sozinha, então achou que talvez com essa atitude poderia alimentar alguma falsa esperança no coitado.

Após muitas tentativas frustradas e idéias não tão criativas, foi obrigada a comer seu talharim esquentado no microondas, acompanhado de suco de uva, que por sorte vinha naquelas embalagens tetra pak e tinha sobrado da semana anterior. Enquanto olhava para ele à sua frente, inteiro, intacto, encorpado, fazendo-se de difícil só para irritá-la.

Nessa hora ela percebeu que sua própria companhia nem sempre supri todas as necessidades...

Ela foi para a cama e o vinho para a geladeira.